No coração da Amazônia, um duelo de cores, paixão e tradição
A rivalidade entre os bois não é só entretenimento — é alma cultural. A cidade se divide entre azul (Caprichoso) e vermelho (Garantido), com a Catedral Nossa Senhora do Carmo funcionando como linha simbólica de fronteira.

Na ilha amazônica de Parintins, cor não é apenas escolha estética — é identidade. Neste fim de semana, a cidade reviveu o espetáculo que, há mais de 50 anos, transforma cultura em competição. Durante três noites, 21 itens foram disputados na arena do Bumbódromo, diante de 30 mil vozes apaixonadas que entoaram toadas sem descanso. A grande pergunta permanece: Caprichoso ou Garantido — quem levará o título em 2025?
Os ingressos deste ano — variando de R$ 550 a R$ 4.800 — foram vendidos em tempo recorde. Em apenas 15 minutos após a abertura em dezembro, todos os setores estavam lotados. Os camarotes, disponíveis online, esgotaram em meros 60 segundos.
A rivalidade entre os bois não é só entretenimento — é alma cultural. A cidade se divide entre azul (Caprichoso) e vermelho (Garantido), com a Catedral Nossa Senhora do Carmo funcionando como linha simbólica de fronteira. A tradição é levada a sério: torcedores evitam vestir as cores do boi rival, especialmente nos currais, onde a regra não escrita é seguida com rigor.
"Fora de Parintins, peço licença para chamar o boi contrário de Caprichoso, porque sei que um não existe sem o outro. Mas dentro da ilha, ele é só 'o boi contrário'", diz Suzan Monteverde, da comissão de artes do Garantido. “Você não entra no curral do contrário de vermelho, e nem eles entram no nosso de azul. Esse respeito é muito sério”, completa.
A força da tradição atrai até grandes marcas, que adaptam suas cores em respeito à rivalidade. A Coca-Cola, parceira desde 1995, adota azul e vermelho na identidade visual durante o festival. Bancos como Bradesco e Santander e até a Azul Linhas Aéreas seguem a mesma linha.
Para as amigas Rayssa Muniz (Caprichoso) e Priscila Neves (Garantido), a rivalidade é intensa, mas respeitosa. “É raro ver alguém agressivo. A provocação existe, mas é zoeira”, garantem.
O festival começou em 1965, como uma celebração promovida pela Juventude Alegre Católica. Com o passar dos anos, tornou-se uma vitrine internacional da cultura amazônica, reunindo influências indígenas, ribeirinhas, negras e quilombolas. “É uma invenção autêntica de Parintins, que mistura regionalismo e elementos globais, mas com raízes nas culturas originárias”, afirma o sociólogo Wilson Nogueira.
Na arena, cerca de 3 mil brincantes compõem o espetáculo. Rafaela Medeiros, ex-Marujada do Caprichoso, fala sobre a emoção de pisar no Bumbódromo: “Tudo se multiplica. A emoção nunca é a mesma. Todos deveriam viver isso ao menos uma vez.”
Famílias inteiras vivem a tradição como legado. Neuda Seabra, por exemplo, acompanha o Garantido há mais de três décadas e já passou o amor pelo boi a filhos e netos. Cada boi tem 2h30 de apresentação por noite, com avaliação baseada em 21 itens divididos em três blocos (musical, cenográfico/coreográfico e artístico).
A performance de cada noite é única e irrepetível. “Nada se repete. Em todas as direções da arena há algo acontecendo”, diz Suzan.
Durante a apresentação de um boi, o outro permanece em silêncio total — nem torcedores, nem músicos podem se manifestar, sob risco de perda de pontos. Esse código de conduta é respeitado por todos.
A rivalidade começou antes do festival oficial, com disputas improvisadas entre os amos dos bois. O Garantido surgiu na Baixa da Xanda, comunidade ribeirinha com forte presença indígena e quilombola. Já o Caprichoso nasceu no bairro da Francesa, reduto histórico de famílias negras.
A profissionalização da competição veio com a criação do festival em 1965. Em 1988, foi inaugurado o Bumbódromo, que trouxe regras, jurados e pontuação técnica. “É uma democracia controlada. A galera também compete, é avaliada”, explica Nogueira.
Os 21 itens que compõem o julgamento incluem desde figuras como o amo do boi, cunhã-poranga e pajé até alegorias, toadas e apresentações coreográficas.
Durante o festival, Parintins inteira vibra com a cultura boi-bumbá. “A cidade é puro festival”, diz Suzan. Crianças aprendem desde cedo a cantar toadas e a respeitar as tradições. A economia local se transforma: 50 mil turistas movimentam hotéis, restaurantes, comércios e oficinas artísticas. Em 2025, o festival movimentou cerca de R$ 26 milhões em patrocínios.
A visibilidade cresceu ainda mais após a participação da cunhã-poranga Isabelle Nogueira no BBB 2024. Mas os desafios da cidade persistem. “Ainda há bairros sem saneamento. O festival não é solução mágica, mas pode trazer benefícios se bem administrado”, pondera o sociólogo.
Em 2025, o Garantido levou à arena o tema “O boi do povo, boi do povão”, celebrando suas raízes quilombolas. O Caprichoso respondeu com “É tempo de retomada”, exaltando saberes ancestrais e a luta de povos marginalizados. Ambos os temas reforçaram a potência simbólica dos bois.
Após as três noites, chega o momento da apuração. Para muitos, o ritual é tão importante quanto o espetáculo. “Antigamente ouvíamos pelo rádio. Anotávamos cada nota no caderno até a última, com o coração na mão”, conta Rafaela Medeiros.
É esse momento que encerra o ciclo anual do festival e inicia a contagem regressiva para o próximo duelo de cores, emoções e tradição.
*Com informações de Correio Braziliense.
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